segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Olivia

            A primeira vez que tentou ser mulher era muito jovem, um menino ficando adolescente, despreparado e muito inseguro de si e dos outros, e foi por isso que houve muita rejeição por parte da escola, da igreja, dos vizinhos, das empresas, dos comércios, da sociedade, da época que demorava a si acabar com sua decisão...
            Ser transgênero em certa década brasileira da era moderna era o mesmo que transmitir doenças de pele, pandemia, comunismo, anarquismo, magia negra, macumba, pecado, violência, marginalidade. Era melhor ser travesti de famosa avenida movimentada de madrugada, ter um cafetão ou uma cafetina, estar preso por briga de transito, desacato...
            Por fim, Ela que não queria mais menino nem crescer como homem teve que fugir cedo e pra longe, outra cidade na zona rural, onde pode tentar fingir ser homossexual, homem sensível, homem delicado sem sucesso. O corpo estava torto, a cabeça não se encaixava direito, o barro era incorreto, vaso desforme, uma guerra perdida de mente e do corpo... corrigindo, uma luta momentaneamente acabada, pois a mente não parava com a alma inquieta e insatisfeita.
            Olivia fechara a caixa de Pandora, amarrava apertadamente os seios que insistiam em desabrochar e segurava com um colete mais que apertado, lacrava-se assim a feminilidade, ou qualquer silhueta de mulher, sua alma estava parando de gritar.
            Um anjo desses assim apareceu no trabalho, primeiro com café, depois bolos, doces, conversas longas, diárias, cotidianas, profundas, íntimas...
            Anjos de cabelos dourados que restauram a verdade e põe as coisas no lugar, determina o tempo e dá-nos subsídios, elementos, ideias, objetivos, metas, novidades, caminhos...
            Por um dia de descanso, Olivia teve a última dúvida, olhou no espelho, viu-se e não gostou do viu: cabelo curto, orelha inteira sem furo para brincos, pele lisa e opaca, rosto sem maquiagem, não precisava, mas era um desleixo total... Tremeu, lembrou-se de palavras passadas, ruídos infernais, um amor que desistiu de ter, ofensas finas, desaprovação continua, malogro...
            Assim como a tempestade cobriu sua face de lágrimas surgiu um novo alvorecer rosa conduzido por deusa matinal Aurora  e seus fieis escudeiros no canto mais puro de vida: bem-ti-vi, bem-ti-vi, bem-ti-vi!
            Era o fim da clausura, da prisão, do medo, do descompasso de mulher. Olivia abriu o baú empoeirado no porão úmido e escuro da casa apertada que escolhera viver, tirou uma calcinha furadinha, um suíte largo, sapatilhas velhinhas, vestido longo e rosado, vestiu como se vestia, então dançou como não fazia mais e estabeleceu colocando o arquinho na cabeça, corou sua nova posição de amar... O principal amor, o auto amor, amar a si mesmo acima de todas as coisas  e o espelho refletiu a alma renovada e o vaso se consertou: alma e corpo estavam juntos finalmente na velha nova mulher.


Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Uelkati

Assim que pisou “onde acaba o mar e começa a terra” já tinha devorado metade da tripulação como parasita que era...
Na sua mente havia uma dúvida: onde encontrar a definitiva imortalidade?
Uelkati devia trocar de corpo em horas, não era difícil para ele encontrar novas vítimas, cascos idiotas, moradas impuras, seu estratagema era simples: depois de uma noite de prazer, depois do fim do coito de seu hospedeiro virava a próxima vitima de costas e com um pequeno rasgo invadia as carnes do novo casulo...
Não preciso dizer que esta criatura amaldiçoada adaptava-se facilmente à outras mentes, outras culturas, outros idiomas, sem uso de desenhos, de manuais ou de mímicas, sua maldição dava-lhe essa condição, sempre seguindo a regra: um dia em cada corpo.
Foi por isso que decidiu sair da selva americana, terra de tartarugas, em que índios viviam enfurnados em montanhas distantes, por tradição, por lendas, por escolhas desastrosas...
Entre os índios, ele era conhecido como demônio velho que de tempos em tempos arrasava aldeias. Temido por gerações até a chegada do homem branco, ingênuo e delicioso homem de carne branca, humanos claros que levaram para longe sem saber do que ele se tratava. Um das poucas bênçãos concedidas pelos viajantes de alto mar aos índios da América do Norte.
Uelkati na cidade, não entendia porque tanta roupa, mas era muito feliz. Para ele os panos eram um lenço para cobrir a boca e o nariz, sentia náuseas, pois muitas vezes se enojava de tanta podridão, esgoto ao ar aberto, lixo por toda parte, poucas cores, poucos bichos, poucas plantas, muito barulho de gerigonças, fumaça excessiva, um frio brutal e preguiça constante.
Ele não precisava correr mais léguas com seu hospedeiro para manter sua parcial imortalidade, precisava colher algumas moedas... Aprendeu a dura pena a evitar os negros que eram muito castigados e explorados até o dia em que encontrou um clérigo poderoso, mas isso é uma história de “O Vampiro e A Bruxa”...




Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social