A
primeira vez que tentou ser mulher era muito jovem, um menino ficando
adolescente, despreparado e muito inseguro de si e dos outros, e foi por isso
que houve muita rejeição por parte da escola, da igreja, dos vizinhos, das
empresas, dos comércios, da sociedade, da época que demorava a si acabar com
sua decisão...
Ser
transgênero em certa década brasileira da era moderna era o mesmo que
transmitir doenças de pele, pandemia, comunismo, anarquismo, magia negra,
macumba, pecado, violência, marginalidade. Era melhor ser travesti de famosa
avenida movimentada de madrugada, ter um cafetão ou uma cafetina, estar preso
por briga de transito, desacato...
Por
fim, Ela que não queria mais menino nem crescer como homem teve que fugir cedo
e pra longe, outra cidade na zona rural, onde pode tentar fingir ser
homossexual, homem sensível, homem delicado sem sucesso. O corpo estava torto,
a cabeça não se encaixava direito, o barro era incorreto, vaso desforme, uma
guerra perdida de mente e do corpo... corrigindo, uma luta momentaneamente
acabada, pois a mente não parava com a alma inquieta e insatisfeita.
Olivia
fechara a caixa de Pandora, amarrava apertadamente os seios que insistiam em
desabrochar e segurava com um colete mais que apertado, lacrava-se assim a
feminilidade, ou qualquer silhueta de mulher, sua alma estava parando de
gritar.
Um
anjo desses assim apareceu no trabalho, primeiro com café, depois bolos, doces,
conversas longas, diárias, cotidianas, profundas, íntimas...
Anjos
de cabelos dourados que restauram a verdade e põe as coisas no lugar, determina
o tempo e dá-nos subsídios, elementos, ideias, objetivos, metas, novidades,
caminhos...
Por
um dia de descanso, Olivia teve a última dúvida, olhou no espelho, viu-se e não
gostou do viu: cabelo curto, orelha inteira sem furo para brincos, pele lisa e
opaca, rosto sem maquiagem, não precisava, mas era um desleixo total... Tremeu,
lembrou-se de palavras passadas, ruídos infernais, um amor que desistiu de ter,
ofensas finas, desaprovação continua, malogro...
Assim
como a tempestade cobriu sua face de lágrimas surgiu um novo alvorecer rosa
conduzido por deusa matinal Aurora e
seus fieis escudeiros no canto mais puro de vida: bem-ti-vi, bem-ti-vi, bem-ti-vi!
Era
o fim da clausura, da prisão, do medo, do descompasso de mulher. Olivia abriu o
baú empoeirado no porão úmido e escuro da casa apertada que escolhera viver,
tirou uma calcinha furadinha, um suíte largo, sapatilhas velhinhas, vestido
longo e rosado, vestiu como se vestia, então dançou como não fazia mais e
estabeleceu colocando o arquinho na cabeça, corou sua nova posição de amar... O
principal amor, o auto amor, amar a si mesmo acima de todas as coisas e o espelho refletiu a alma renovada e o vaso
se consertou: alma e corpo estavam juntos finalmente na velha nova mulher.
Jorge
Barboza
Escritor
e Colunista Social