Tenho medo de ligar o rádio, como quem entra no
metrô à hora de rush e de pico, e de que por descaso ou por maledicência alguém
me pise a inteligência: “foi sem querer, desculpe-me”. Ligo o som, escondido no
meu canto, encolhido como quem nem está ali, mas se por acaso os meus ouvidos
tropeçam em alguma voz agressiva, desligo logo.
A seguir fecho os olhos e sonho um equino. Foi um
velho capataz angolano quem me ensinou isto. Eu estava sentado nas areias de Luanda,
com um caderno nos joelhos, concluindo contos. Ele veio por trás e ficou um
momento observando:
- Por que faz isso? – perguntou. – A história não
cabe aí!
Sentou-se ao meu lado. Disse-me que às vezes, ao dormir,
lhe doía, do lado direito da cabeça, a lógica. Caminhava então até à praia,
estendia-se de costas na areia, e sonhava um equino.
- Foi José Eduardo Agualusa, sabe? Ele me introduziu.
Nessa altura não compreendia quem o capataz se
referia. Começou por sonhar pequenos potrinhos, muito rudimentares, só um veloz
traço de castanho, só um ligeiro arco correndo no ar, mas com o tempo, à medida
que desenvolvia a técnica, passou a sonhar jumentos, burros, inclusive pôneis.
A ambição dele era sonhar um cavalo árabe preto.
- Esteja atento à cor dos campos –
preveniu-me. - Por exemplo, de manhã, bem cedinho, se o campo estiver liso e dourado,
é bom para sonhar um pônei. O puro sangue inglês, que é um cavalo famoso pelas
corridas, grande, se sonha muito bem depois que chove, e a lama anoitece a
terra. Já os quartos de milha são melhor sonhados quando o vento é forte como
os saltos destes belíssimos equinos.
E os centauros? Ele olhou-me atônito:
- Centauros? Servem para alguma
coisa? Centauros são animais mal sonhados, como os monotrêmatos (equidna e
ornitorrinco), os pégasos ou os unicórnios. Você pode conseguir fazer bichos
melhores.
Venho tentando. Nunca soube o nome do velho. Era um
sujeito mediano, tranquilo como uma floresta, de olhos calmos e uma pele
reluzente e clara, esticada bem sobre os ossos. Tinha uma voz tão aconchegante
que, à manhã, enquanto falava, soava como brisa marinha. Uma voz daquelas devia
poder transmitir-se em canções. A mim fazia-me lembrar a de Djavan.
Dizia-se naquela cidade que o capataz estivera duas
semanas perdido no deserto. Salvara-se por milagre, porque ao sétimo dia São
Jorge lhe apareceu nas dunas, trazendo nas mãos um frango assado e dois litros
de guaraná. Ele próprio me desmentiu o milagre, até um pouco irritado:
- São Jorge?! Santo, rapaz? Quem me apareceu foi José
Eduardo Agualusa.
Em todas as histórias de viajantes há sempre
exageros, por vezes até mentiras inaceitáveis, ou não seriam mirabolantes.
Neste momento, porém, sou ateu – uso esta palavra pela primeira vez na vida;
não veem que brilha? – ele lia! Era um grande devoto de José Eduardo Agualusa e
Ondjaki. Contou-me que José apareceu-lhe de tarde, trazendo nas mãos o Manual Prático de Levitação, e lhe
leu o livro inteiro.
Logo depois que o achou mais recomposto, ensinou-o
a sonhar equinos.
- Sonhar cavalos faz bem à alma. Lembre-se que por
cada homem mau no mundo há no continente mil cavalos bons.
O meu capataz não tinha rádio. Às vezes acontecia
demorar-se numa padaria, ou no boteco (havia um rádio na padaria), e o ecos das
guerras alheias roubava-lhe a paz. Ele sofria com as guerras alheias. Andava
pela cidade com o livro “Vendedor
de Passados” debaixo do braço, tentando, sem sucesso, converter os
demais. Só eu lhe dava atenção:
- Quando tudo der errado leia José Eduardo Agualusa.
Uma noite vi-o sonhar um cavalo mustang preto.
- Foi o meu primeiro grande equino – disse-me
depois, exausto pelo esforço, para a semana vou tentar um quarto de milha.
Nunca mais voltei a Luanda, nunca mais o vi, mas
calculo que por esta altura ele já tenha conseguido sonhar o seu Cavalo Árabe
Negro. Já o deve ter lançado aos montes, estradas, campos verdes de puro sonho,
e a corrida dele há de estar ressoando num ritmado trote. Um dia os cavalos
virão para salvar os homens sem sono e sem sonhos.
Jorge Barboza
Escritor
e Colunista Social
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