sábado, 10 de junho de 2017

Quando tudo der errado leia José Eduardo Agualusa

Tenho medo de ligar o rádio, como quem entra no metrô à hora de rush e de pico, e de que por descaso ou por maledicência alguém me pise a inteligência: “foi sem querer, desculpe-me”. Ligo o som, escondido no meu canto, encolhido como quem nem está ali, mas se por acaso os meus ouvidos tropeçam em alguma voz agressiva, desligo logo.
A seguir fecho os olhos e sonho um equino. Foi um velho capataz angolano quem me ensinou isto. Eu estava sentado nas areias de Luanda, com um caderno nos joelhos, concluindo contos. Ele veio por trás e ficou um momento observando:
- Por que faz isso? – perguntou. – A história não cabe aí!
Sentou-se ao meu lado. Disse-me que às vezes, ao dormir, lhe doía, do lado direito da cabeça, a lógica. Caminhava então até à praia, estendia-se de costas na areia, e sonhava um equino.
- Foi José Eduardo Agualusa, sabe? Ele me introduziu.
Nessa altura não compreendia quem o capataz se referia. Começou por sonhar pequenos potrinhos, muito rudimentares, só um veloz traço de castanho, só um ligeiro arco correndo no ar, mas com o tempo, à medida que desenvolvia a técnica, passou a sonhar jumentos, burros, inclusive pôneis. A ambição dele era sonhar um cavalo árabe preto.
            - Esteja atento à cor dos campos – preveniu-me. - Por exemplo, de manhã, bem cedinho, se o campo estiver liso e dourado, é bom para sonhar um pônei. O puro sangue inglês, que é um cavalo famoso pelas corridas, grande, se sonha muito bem depois que chove, e a lama anoitece a terra. Já os quartos de milha são melhor sonhados quando o vento é forte como os saltos destes belíssimos equinos.
E os centauros? Ele olhou-me atônito:
            - Centauros? Servem para alguma coisa? Centauros são animais mal sonhados, como os monotrêmatos (equidna e ornitorrinco), os pégasos ou os unicórnios. Você pode conseguir fazer bichos melhores.
Venho tentando. Nunca soube o nome do velho. Era um sujeito mediano, tranquilo como uma floresta, de olhos calmos e uma pele reluzente e clara, esticada bem sobre os ossos. Tinha uma voz tão aconchegante que, à manhã, enquanto falava, soava como brisa marinha. Uma voz daquelas devia poder transmitir-se em canções. A mim fazia-me lembrar a de Djavan.
Dizia-se naquela cidade que o capataz estivera duas semanas perdido no deserto. Salvara-se por milagre, porque ao sétimo dia São Jorge lhe apareceu nas dunas, trazendo nas mãos um frango assado e dois litros de guaraná. Ele próprio me desmentiu o milagre, até um pouco irritado:
- São Jorge?! Santo, rapaz? Quem me apareceu foi José Eduardo Agualusa.
Em todas as histórias de viajantes há sempre exageros, por vezes até mentiras inaceitáveis, ou não seriam mirabolantes. Neste momento, porém, sou ateu – uso esta palavra pela primeira vez na vida; não veem que brilha? – ele lia! Era um grande devoto de José Eduardo Agualusa e Ondjaki. Contou-me que José apareceu-lhe de tarde, trazendo nas mãos o Manual Prático de Levitação, e lhe leu o livro inteiro.
Logo depois que o achou mais recomposto, ensinou-o a sonhar equinos.
- Sonhar cavalos faz bem à alma. Lembre-se que por cada homem mau no mundo há no continente mil cavalos bons.
O meu capataz não tinha rádio. Às vezes acontecia demorar-se numa padaria, ou no boteco (havia um rádio na padaria), e o ecos das guerras alheias roubava-lhe a paz. Ele sofria com as guerras alheias. Andava pela cidade com o livro “Vendedor de Passados” debaixo do braço, tentando, sem sucesso, converter os demais. Só eu lhe dava atenção:
- Quando tudo der errado leia José Eduardo Agualusa.
Uma noite vi-o sonhar um cavalo mustang preto.
- Foi o meu primeiro grande equino – disse-me depois, exausto pelo esforço, para a semana vou tentar um quarto de milha.
Nunca mais voltei a Luanda, nunca mais o vi, mas calculo que por esta altura ele já tenha conseguido sonhar o seu Cavalo Árabe Negro. Já o deve ter lançado aos montes, estradas, campos verdes de puro sonho, e a corrida dele há de estar ressoando num ritmado trote. Um dia os cavalos virão para salvar os homens sem sono e sem sonhos.


           
            Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social

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