domingo, 20 de março de 2016

Azura

Aquele dia podia ser mais um como os outros tantos no Vale da Morte, passando em brancas nuvens no poente amarelado pelo sol maneiro do outono, principiando o inverno, mas começara errado. O homem das chaves estava atrasadíssimo com seus estalos e cores de carruagem. As serpentes que habitavam à arvore onde Azura estava descansando, foram tomar o desjejum sem ela. Isso era o fim para ela. Azura não gostava de ser deixada para trás mesmo com explicações.
A mulher sentiu um desconsolo de saudade como se faltasse algo. Família, pensou. Família, conclui. Estava tão longe e ausente. Foi quando sentiu aquele perfume maravilhoso vindo do norte, girando em um redemoinho roxo. Isso era um sinal que sua sorte estava mudando. Viu de longe um corvo solitário voando e depois encontrou outro no pântano em frente da ponte. E lembrou das plantações da sua infância, da fazenda arrodeada de milharais que eram protegidos dessas pragas com um espantalho. Das ovelhas subindo as montanhas verdes e ela correndo para ver com um gostoso pão com sabor de muito obrigado. Soltou um sorriso imenso, pois as lembranças lhe sorriram tranqüila a alma. Estava pronta para começar de novo e quem sabe até voltar à civilização.
            Sua mestra teria chegado? Não! Sua mestra tinha ido definitivamente morar com a deusa Lilith nas entranhas sagradas da velha terra, onde poucos sabiam ir ou mesmo imaginavam existir.
- Porque logo agora? Inconsolável Azura perguntava-se olhando a si no espelho preso a sua nova escova de metal.
As serpentes retornaram mansamente ao ninho trazendo uma maçã grande e madura. Sem jeito, Azura agradeceu, terminou de prender os cabelos com galhos e flores, e lentamente comeu a maçã. Notou o redemoinho roxo ainda parado em certa parte descampada do Vale da Morte e resolveu ir lá. Com certeza aquilo não era só um sinal. Quem sabe uma mensagem mágica de sua mestra? As serpentes impediram sua saída, pois ainda não havia vestido a longa capa de azul noturno.
Antes que se zangasse, Azura ouviu o silêncio ser substituído por um barulhinho bom, um chiado de sinos, de chaves num famoso molho. Sim! Era o Danilo com suas mercadorias e tesouros numa carroça cigana, e no pescoço um cordão dourado de mil chaves.
Danilo ao contrário de todos na região, não tinha medo de passar durante o dia pelo Vale da Morte. Ele conhecia muitas coisas, sabia de trás para frente e de frente para trás o caminho seguro no Vale da Morte, e isso era o suficiente para seguir em paz pelo vale sem armadilhas durante os dias. Com certeza, como diziam os mais velhos, ele herdara isso de seu avô espanhol,junto com as chaves.
Ninguém, além de Azura, ficava tanto tempo e tão bem naquele lugar mesmo no fim da tarde, pois o Vale da Morte era assim conhecido por sua centena de mortos e almas penadas... Um lugar lindo, cheio de beleza de plantas longas, flores delicadas, morros moldados pelo vento, águas claras e silencio conciliador, de se olhar a distancia, pois de perto, bem perto era um grande labirinto de arvores com grandes ninhadas de cobras e morcegos, poços de areia movediça, águas escuras, paradas e profundas, cheias de piranhas e crocodilos.
Azura contrariada vestiu seu manto, se despediu sorrindo das serpentes no ninho, olhou para os lados, não viu mais o homem das chaves no caminho, nem ouviu seu barulhinho bom, desceu rápido da arvore, andou-andou, correu até o descampado e perdeu o redemoinho roxo.
Sentiu uma tristeza tão grande. O coração estava apertado. Chorou, chorou até que do mato surgiu uma borboleta lilás que a circulou e partiu. Azura voltou a sorrir, olhou para o chão, viu um rastro de chaves e ficou apavorada.
- Será que aconteceu algo com o Danilo?
Azura chamou as serpentes com um assovio e continuo andando, seguindo o rastro e pensando, pois não há mau feitores por aqui. Será que? Minha deusa! Ela gritou baixinho e passou a mão pelo rosto enquanto imaginava o pior. Não demorou muito e todos no Vale da Morte ficaram sabendo da procura de Azura pelo dono das chaves.
Passou-se um dia, uma noite e outro dia. E nada. Azura nunca soube ao certo o tamanho do Vale da Morte, mas agora tinha certeza era muito grande e complexo, cheio de costas e reentrâncias, de lagos e cachoeiras, uma floresta com certeza e uma incerteza: onde estava o homem das chaves. Nenhum bicho sabia dizer, nem planta, nem fantasma, nem coisa alguma. Só aquele imenso rastro que agora terminava em frente da fronteira do vale com um novo vilarejo na beira do carroção cigano.
Por alguns instantes teve medo, estava respirando muito curto, com as mãos tremulas suava frio, tremia amarela, pois podia haver gente na rua, inquisidores e adoradores do cordeiro. O silêncio torcia. Azura pediu as serpentes que acompanhavam que ficassem a espreita, pois quando precisasse bateria um dos pés. Foi caminhando e olhando tudo, não encontrou gente na rua, só uma bandeira negra no mastro da praça. Ouviu um pigarrear forte de dentro de um sobrado amarelo e viu gente se escondendo.
Parou, respirou fundo e voltou para trás. Alguém olhou pela fresta e reconhecendo-a abriu uma porta. Ela calmamente girou um dos dedos, tirou das costas o colar de mil chaves que deixou no chão e fugiu.
De volta a floresta bateu um pé no chão, as serpentes não vieram em seu socorro, bateu mais uma vez e outra vez. Desesperada ela começou a chorar compulsivamente, chorou-chorou e foi abrindo um buraco na terra, uma cova grande e de lá surgiam as mais coloridas pedras, das pedras surgiram cintilantes luzes. E das luzes surgiu uma pequena boiúna sonolenta ainda.

Azura se acalmou com isso e percebeu que estavam muito longe do solo fértil coberto de vida, gramas e arvores, céu amarelo de brancas nuvens, regatos e cachoeiras. Podia tocar uma raiz inteira e conversar com as minhocas, pois estava num lençol de águas límpidas. Não era mais gente, nem serpente, era só uma pedrinha lilás que mais tarde um homem transformaria em pingente de uma corrente e chamaria de Ametista.

Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social

Nenhum comentário:

Postar um comentário