Você já reparou como nossos destinos
são governados por outros, sem desistir, mas crescer – isso não era uma das
frases daquele montão de papeis espalhados na escrivaninha, mas um labirinto
que levava a moça a olhar para o céu arroxeado de poucos brilhantes piscando e
uma lua branquinha em forma de sorriso de Ísis que também não estava descrito
nas cartas.
Tudo acontece por um motivo. Quando
criança, a moça pediu ao pai que fosse para sempre livre e selvagem para correr
com os cães de caça e nunca, nunca se casar e se cansar. Há muito não tinha
tempo ou espaço para si, cuidava por demais dos outros. Começou assim com a
mãe, depois o pai viúvo, o marido bêbado, os ingratos filhos gêmeos e por fim
com a morte de seu amado inimigo, cuidou da chorosa sogra.
A moça se tornou assim uma excelente
sobrevivente, uma mulher perfeita ou quase, se não fosse um rasgo no peito
esquerdo que ao acordar de cada novo dia se encolhia feito caracol nos lençóis
floridos. Era por isso que a moça olhava, olhava muito para o horizonte e via
um quase sol, um quase dia e um quase rio de lágrimas encharcando o rosto, ela
decidia não falar, mas pensava alto: “Hoje e só hoje eu não vou sofrer”.
Promessa que sempre fazia e de forma muito agradável acabava cumprindo sem
ajuda de ninguém. Ainda na cama de flores com cheirinho de mato e véus
translúcidos de pétalas, não levava a mão ao coração, mas fechava e abria os
dedos por três vezes. A metade em sua vida agora era o que tinha de melhor.
Finalmente e devagar a moça
levantava-se, vagarosamente girava os olhos ampliando o mundo, ouvia de longe
um tico-tico, lá para bandas da roseira, imaginava a cena, o pássaro tomando um
longo banho entre rosas vermelhas gotejando orvalho, sabonete de erva doce numa
das asas e uma toalha rendada na terra. Ela ria da bobagem. Desviava do
primeiro espelho no caminho, virando a esquerda na porta aberta em frente ao
guarda roupa de canto e reparava no banheiro frio. Aros e dobradiças
metalizados, azulejos antigos, cortinas e toalhas alvas, privada e bidê rosa,
carpete fosco, lixo comum, pia fria cheia de pequenos vidros de perfume e uma
torneia resmungando água. A moça pintava os olhos com algumas gotas balbuciadas
pela torneira, sorria e sentia um incomodo acima do umbigo.
- Corre-corre pra cozinha – gritou o
estomago barulhento, pois a moça estava só na casa.
Já na cozinha, ela encheu a chaleira
para ferver hortelã, melissa e camomila. Oh belezura! A fruteira cacheada
brilhava com cenouras, batatas, beterrabas, mexericas, bananas, maças, alfaces
e uvas. Um aroma tão misturado que a moça lançou distante um suspiro e um olhar
profundo, viu a rede me balança do outro lado e nada acontecia nesse mundo. A
moça apanhou na mesa uma maça, partiu-a ao meio, caminhou para rede, sentou, depois
recostada sentiu umas areias nos olhos, um boquejo tão gostoso que não teve
jeito cochilou e sonhou.
Sonhou que tinha ainda os dois seios,
era grega, pois vestia uma túnica curta e louros nos cabelos. Nas ruínas de um
templo nas montanhas presenciava uma reunião de bichos, guerreiras e sua deusa
de devoção. Ártemis como sempre era a mais impetuosa erguia o arco e as flechas
acima da cabeça e dizia: “não sejam com as mulheres de Athenas que podem morrer
por seus maridos e filhos, mas jamais podem viver por elas mesmas”. Nesse
momento as rãs partiram e com elas, os cães, as pombas brancas e cotovias. Será
que era isso que a moça queria para si e para o resto vida? Foi saindo seguindo
o caminho dos bichos e teve a morte como conselheira. Sim! A morte, aquele
mulher espetacular de longos cabelos dourados, olhar penetrante verde, seios
fartos amarrados por fitas brancas, pele bronzeada e cercada de jóias prateadas
talhadas como galhos de vinhedo sem frutas, unhas limpas, saia roxa e longa.
Sempre estava à esquerda dos homens. Vinha flutuando no céu laranja, parando as
nuvens e os bichos do caminho. Primeiro foram as pombas brancas e cotovias que
acenavam com as asas abertas, depois os cães e as rãs que se curvavam
gentilmente. A morte sorriu sem uma foice. Chamava-se Thanatos e agora estava
bem em frente à moça que se tornou rubra. A moça tirou os louros da cabeça. Os
bichos cercaram a morte. A moça tirou a túnica curta. A morte fingiu cobrir os
olhos. A moça segurou os seios e tampou o sexo. A morte fechou os lábios, tirou
do alto da cabeça uma coroa de rubis e o céu escurece. Um espelho enorme com
moldura com rãs nas bases, aves no alto ligados pelos cães no meio surgiu no
seu lugar em frente a moça com os seguinte dizeres: O que fazemos na vida ecoa
na eternidade das células de Deus. A vida é um rio caudaloso e a morte é uma
das curvas deste rio. Conheci a ti mesmo, pois o que é mais importante é viver.
Mesmo sem um braço, uma perna, um pulmão ou um seio. Você é muito mais que
isso, você é uma filha do amor de seu pai com sua mãe nas células de Deus...
Foi então que a moça acordou sorrindo,
olhou tudo a sua volta, depois para o corpo que tinha e para o barulhinho bom
que vinha da cozinha. A chaleira cantarolava um cheiro gostoso. Saiu da rede e
correu para o espelho que estava no meio da sala, ergueu os cabelos com as mãos
e sorriu mais ainda, pois lá ainda tinha os dizeres da morte e ela não era mais
só a metade e só o quase, não era perfeita, mas era uma promessa que sempre
fazia e de forma muito agradável acabava cumprido sem ajuda de ninguém.
Jorge Barboza
Escritor e Colunista Social
Nenhum comentário:
Postar um comentário