domingo, 10 de abril de 2016

Na Célula de Deus

Você já reparou como nossos destinos são governados por outros, sem desistir, mas crescer – isso não era uma das frases daquele montão de papeis espalhados na escrivaninha, mas um labirinto que levava a moça a olhar para o céu arroxeado de poucos brilhantes piscando e uma lua branquinha em forma de sorriso de Ísis que também não estava descrito nas cartas.
Tudo acontece por um motivo. Quando criança, a moça pediu ao pai que fosse para sempre livre e selvagem para correr com os cães de caça e nunca, nunca se casar e se cansar. Há muito não tinha tempo ou espaço para si, cuidava por demais dos outros. Começou assim com a mãe, depois o pai viúvo, o marido bêbado, os ingratos filhos gêmeos e por fim com a morte de seu amado inimigo, cuidou da chorosa sogra.
A moça se tornou assim uma excelente sobrevivente, uma mulher perfeita ou quase, se não fosse um rasgo no peito esquerdo que ao acordar de cada novo dia se encolhia feito caracol nos lençóis floridos. Era por isso que a moça olhava, olhava muito para o horizonte e via um quase sol, um quase dia e um quase rio de lágrimas encharcando o rosto, ela decidia não falar, mas pensava alto: “Hoje e só hoje eu não vou sofrer”. Promessa que sempre fazia e de forma muito agradável acabava cumprindo sem ajuda de ninguém. Ainda na cama de flores com cheirinho de mato e véus translúcidos de pétalas, não levava a mão ao coração, mas fechava e abria os dedos por três vezes. A metade em sua vida agora era o que tinha de melhor.
Finalmente e devagar a moça levantava-se, vagarosamente girava os olhos ampliando o mundo, ouvia de longe um tico-tico, lá para bandas da roseira, imaginava a cena, o pássaro tomando um longo banho entre rosas vermelhas gotejando orvalho, sabonete de erva doce numa das asas e uma toalha rendada na terra. Ela ria da bobagem. Desviava do primeiro espelho no caminho, virando a esquerda na porta aberta em frente ao guarda roupa de canto e reparava no banheiro frio. Aros e dobradiças metalizados, azulejos antigos, cortinas e toalhas alvas, privada e bidê rosa, carpete fosco, lixo comum, pia fria cheia de pequenos vidros de perfume e uma torneia resmungando água. A moça pintava os olhos com algumas gotas balbuciadas pela torneira, sorria e sentia um incomodo acima do umbigo.
- Corre-corre pra cozinha – gritou o estomago barulhento, pois a moça estava só na casa.
Já na cozinha, ela encheu a chaleira para ferver hortelã, melissa e camomila. Oh belezura! A fruteira cacheada brilhava com cenouras, batatas, beterrabas, mexericas, bananas, maças, alfaces e uvas. Um aroma tão misturado que a moça lançou distante um suspiro e um olhar profundo, viu a rede me balança do outro lado e nada acontecia nesse mundo. A moça apanhou na mesa uma maça, partiu-a ao meio, caminhou para rede, sentou, depois recostada sentiu umas areias nos olhos, um boquejo tão gostoso que não teve jeito cochilou e sonhou.
Sonhou que tinha ainda os dois seios, era grega, pois vestia uma túnica curta e louros nos cabelos. Nas ruínas de um templo nas montanhas presenciava uma reunião de bichos, guerreiras e sua deusa de devoção. Ártemis como sempre era a mais impetuosa erguia o arco e as flechas acima da cabeça e dizia: “não sejam com as mulheres de Athenas que podem morrer por seus maridos e filhos, mas jamais podem viver por elas mesmas”. Nesse momento as rãs partiram e com elas, os cães, as pombas brancas e cotovias. Será que era isso que a moça queria para si e para o resto vida? Foi saindo seguindo o caminho dos bichos e teve a morte como conselheira. Sim! A morte, aquele mulher espetacular de longos cabelos dourados, olhar penetrante verde, seios fartos amarrados por fitas brancas, pele bronzeada e cercada de jóias prateadas talhadas como galhos de vinhedo sem frutas, unhas limpas, saia roxa e longa. Sempre estava à esquerda dos homens. Vinha flutuando no céu laranja, parando as nuvens e os bichos do caminho. Primeiro foram as pombas brancas e cotovias que acenavam com as asas abertas, depois os cães e as rãs que se curvavam gentilmente. A morte sorriu sem uma foice. Chamava-se Thanatos e agora estava bem em frente à moça que se tornou rubra. A moça tirou os louros da cabeça. Os bichos cercaram a morte. A moça tirou a túnica curta. A morte fingiu cobrir os olhos. A moça segurou os seios e tampou o sexo. A morte fechou os lábios, tirou do alto da cabeça uma coroa de rubis e o céu escurece. Um espelho enorme com moldura com rãs nas bases, aves no alto ligados pelos cães no meio surgiu no seu lugar em frente a moça com os seguinte dizeres: O que fazemos na vida ecoa na eternidade das células de Deus. A vida é um rio caudaloso e a morte é uma das curvas deste rio. Conheci a ti mesmo, pois o que é mais importante é viver. Mesmo sem um braço, uma perna, um pulmão ou um seio. Você é muito mais que isso, você é uma filha do amor de seu pai com sua mãe nas células de Deus...
Foi então que a moça acordou sorrindo, olhou tudo a sua volta, depois para o corpo que tinha e para o barulhinho bom que vinha da cozinha. A chaleira cantarolava um cheiro gostoso. Saiu da rede e correu para o espelho que estava no meio da sala, ergueu os cabelos com as mãos e sorriu mais ainda, pois lá ainda tinha os dizeres da morte e ela não era mais só a metade e só o quase, não era perfeita, mas era uma promessa que sempre fazia e de forma muito agradável acabava cumprido sem ajuda de ninguém.

Jorge Barboza

Escritor e Colunista Social

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