quarta-feira, 20 de abril de 2016

Resiliência

           Quando finalmente apagou as velas de seu candelabro, a rainha não dormiu, sentia falta de algo, não era o breu nem era o silencio. Virava de um lado a outro na sua memória, o caminho era difícil até Branca de Neve. Quando o rei morreu, a soberana enfrentou algumas dificuldades, mas a enteada deu-lhe toda credibilidade. Com isso, o povo e os nobres acabaram respeitando-a e os clericais com seus narizes tortos por fim também. A moça sempre fazia o que a rainha pedia, mesmo nas últimas horas do dia ou com os primeiros raios solares. O que serviçais demoravam ou enrolavam muito a fazer, Branca de Neve com criatividade fazia com brevidade. As refeições eram serenas.
            Com o passar dos anos, a rainha e sua princesa mudaram para um castelo menor com cinco serviçais de intensa dedicação e confiança. Pois o velho castelo tinha fantasmas de guerra e um luxo trabalhoso de se cuidar. Um local muito abafado e sombrio para duas damas. O novo castelo era um sonho de menina resultado de tratados econômicos e da paz da região. O reino duplicava seus ganhos e suas produção à todos.
Silencioso e de longe por outras molduras passeava o espelho mágico guardando o que há de bom em si. O caçador nunca o enganará nem a rainha também.
      O que mais incomodava a soberana dessas lembranças de prosperidade ainda aproveitadas era o último pedido de Branca de Neve: a clemência da rainha.  Era tarde em sua memória, o sol iluminava tudo em tons de sépia, a rainha se transfigurava em velha bruxa corcunda, vestia um surrado manto roxo, trazia na mente um ódio incalculável e numa das mãos uma cesta palha cheia de maçãs. Parou na frente da casa dos sete anões, esperou muito tempo por isso. A floresta que até ali era todo barulho silenciou, calou-se para um prelúdio. A rainha disfarçou sua voz e quando tentava dar a segunda batidinha na porta foi logo convidada a entrar e a aguardar.
A moradora ajeitava incessantemente uma cortina nas janelas da sala. Branca de Neve tinha um pano protegendo os cabelos e as roupas desgastadas pelo trato da casa.  A casa toda estava um brinco. Branca de Neve estava suja, muito suja e desalinhada por isso. Nem de longe nem perto lembrava uma princesa. Não reclamava de nada, fazia gosto em receber a visita, serviu-lhe água, fez bolinhos de chuva e um cafezinho fresquinho para seus divertimentos de fim de tarde. As duas contavam historias do passado e do presente como velhas amigas. A princesa comprou até umas maçãs para ajudar a pobre velhinha a sua frente. Não precisa de nada. Já estava acostumada a ser submissa.  Faltava-lhe astúcia.
A rainha ainda disfarçada e grata ofereceu-lhe um presente dizendo:
- Tome, meu bem, uma maçã mágica...
Ingênua, a princesa, respondeu:
- Não vai fazer-lhe falta?
- Não, meu bem, vejo que precisa mais do que eu (estava sendo sincera). Pense bem forte o que mais deseja dessa vida. Você é jovem deve ter um sonho secreto. Um amor proibido...
- Eu não sei se devo...
- E só dar uma mordidinha nesta maça mágica é pronto.
- Isso vai fazê-la feliz?
- Isso não importa agora, meu bem, peça de uma vez...
- Está bem, eu desejo que a minha madastra, a minha rainha, me perdoe toda inveja que alimento dela, de sua candura, de sua beleza e de sua inteligência...
            Depois de seu pedido, Branca mordeu e engoliu a maçã tão rápido que a soberana não pode impedí-la aceitando as suas desculpas. Não pode ver onde foi parar o resto da maça enquanto segurava à morta, pedindo desculpas, prometendo um novo tempo, falando de sua vergonha e de sua gratidão tardia. Não havia nada a fazer ali. A rainha deitou a princesa delicadamente no sofá jurando que descobriria uma cura para seu mal. A maçã resolveu esconder-se atrás de um dos moveis da cozinha e a floresta foi coberta de neve de repente. A natureza anunciava sua solidariedade.
A rainha chorando muito e descontrolada voltou a sua jovialidade normal. Correndo alcançou ao castelo. Despencou as masmorras. Revirou horas a fio consultando seus livros de magia e só encontro uma solução para a vida perdida: um primeiro beijo de amor. A fome não lhe incomodava nem a sede. Não tinha cabeça para isso. Pensou em se matar e assumir toda culpa do mundo. Primeiro tinha que cuidar dos pobres e desafortunados. Devia escolher um novo governante sério e honesto. Esqueceu-se de seu principal escudeiro: o espelho mágico. E foi ter a madrugada pela primeira vez como conselheira. Talvez uma bruxa do oeste ou uma fada? Foi assim que cansada e desgastada fechou os olhos para turbulentos pesadelos.
O sol deu descanso para a rainha com nuvens cinzas e raios distantes. A rainha despertou tarde e muito abatida. Era sexta-feira, havia diligencias urgentes: a nevasca surpreendeu os plantadores e os criadores; toda água do reino amanheceu congelada; mercadores e compradores chegavam depois do almoço; e populares aguardavam audiências no fim da tarde.
A soberana tentou se acordar sem água, arranjou-se com um pouco de colônia, arrumou-se lentamente com ajuda de uma serviçal, não queria, mas teve que embonecar-se para disfarçar as profundas olheiras, a cabeça ainda tonta, o estomago que remexia muito, sentiu uma fraqueza de ter tremedeira, comeu uma maçã e lembrou-se desapontadamente de seu crime na tarde passada.
Antes que todos soubessem a rainha mandou uma patrulha para a floresta com um médico dentista até que pudesse contar a verdade e se preparar para um julgamento público. Ela trabalhou, trabalhou, almoçou tarde, trabalhou novamente e trabalhou mais até que veio a boa noticia: Branca de Neve sofreu um atentado, mas resistira com ajuda de um príncipe. Ele não usou de traqueostomia, mas de um beijo que aspirou ao que fechava a glote da princesa. Por que a rainha não pensou nisso antes, agora era hora de comemorar e prepare-se para uma conversa sincera e conciliadora que não inspirou muitas histórias, mas valia todo esforço para mudar o amanhã do reino e seus moradores.

Jorge Barboza
Escritor e Colunista Social

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