domingo, 10 de julho de 2016

Io

Se o mal fosse realmente um ser lindo, Io, seria sua mais perfeita representação humana. Dizem que ela não era mulher nem homem de tão violenta que era, fosse onde fosse era uma beleza fria de mármore perfeito, uma devoradora de almas e uma grande partidora de corações.
Toda noite fazia uma vitima nos bares. Seja pelo seu delicioso perfume ou envolvente presença. Horas usava o chapéu de lado, horas usava o leque aberto escondendo os lábios.
Io por usar sete saias era considerada por muitos uma feiticeira oriental que nunca morria, dizem que nas noites de sexta-feira e lua cheia era possível ver no seu quarto: luzes estranhas, sombras demoníacas e um caldeirão sempre fervendo algo.
Um dia tudo mudou e Io também, parecia não carregar mais armas em suas entranhas e desejava francamente parar de matar. Ela parecia outra, em sua cabeça surgiram os primeiros fios brancos e no rosto uma ruga.
Muitos diziam que ela estava tramando algo imensamente ruim, pois um lobo pode perder o pelo, menos a voracidade. Ninguém chegava nela e perguntava, se compraziam em cada invencionice que dava medo. Parecia que aquela gente não tinha mais o que fazer. E assim passaram dias, tardes e noites até.
Um incêndio foi o estopim da profunda mudança da região, ele queimou a hospedagem, outros imóveis e Io...
Ela que sempre foi considerada uma vilã, por alguns momentos no incêndio se tornou outra mulher, de muito longe ouviu o pequeno Nicolas chorando no andar de cima, subiu loucamente a escada, arrombou a porta e salvou o menino, mas acabou sendo presa. Todos ficaram satisfeitos com isso, pois nada mais justo que a causadora do incêndio se queimar por inteiro, ainda mais num plano bobo de salvar um inocente por uma nova e boa fama.
A velha dona da hospedaria sabia que isso não era a verdade e dizia chorando muito que agora não teria ninguém mais para assoviar no fim da tarde sua canção preferida nem tão boa pagadora. Ela havia perdido tudo que demorará uma vida inteira para guardar. Sem família, sem moradia e com uma única amiga hospitalizada, ela entrou escondida no hospital e seguiu ao quarto de Io sem que os guardas soubessem. Lá, ela soltou um gritinho. Io estava toda amarrada por ataduras e parou de gemer assim que viu a dona da hospedagem.
- Filha, eu vim te libertar – cabisbaixa falou a dona da hospedagem.
Io piscou os olhos e afônica perguntou:
- Como está a criança?
- Está muito bem. Graça a Deus! – respondeu calmamente a dona da hospedagem.
- Então eu posso ir à paz.
Io levantou-se da cama, pegou um lápis no criado mudo ao lado do leito, riscou na parede um barco, depois desenhou sua vela e umas ondas. Pegou na mão da velha e sorrindo perguntou:
- Você vem comigo?

A velha fez sim com a cabeça, então juntas elas pularam para dentro do desenho do barco que partiu lentamente para o horizonte e outras paredes.

(Este texto faz parte do livro ESSAS MULHERES de Jorge Barboza pelo clubedeautores.com.br)

Jorge Barboza
Escritor e Colunista Social

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